O lactente com diabetes
Publicado em 13 de abril de 2011Texto publicado em 05/04/11, na coluna do Dr. Rafael Mantovani, na página da Sociedade Brasileira de Diabetes (www.diabetes.org.br).
Uma das situações mais delicadas na Endocrinologia Pediátrica é o diagnóstico de diabetes mellitus tipo 1 em uma criança pequena. Geralmente, a criança é internada num centro de tratamento intensivo (CTI) pediátrico, o que, por si só, gera uma grande apreensão nos pais. É um momento de compreensível ansiedade, repleto de dúvidas e incertezas.
E, de fato, as crianças pequenas com diabetes apresentam várias particularidades e características clínicas que as distinguem em relação ao seu cuidado, quando comparadas às crianças mais velhas com diabetes.
Nos últimos anos, a incidência do diabetes mellitus tem aumentado de 3 a 5% por ano, principalmente em crianças pré-escolares. Paralelamente, o chamado “tratamento intensivo” tem ganhado cada vez mais espaço no cuidado dos diabéticos. Dentre as características desse tratamento, que visa o controle mais estrito da glicemia, citam-se a aplicação de múltiplas doses de insulina e a automonitorização glicêmica frequente, medidas que reduzem, no longo prazo, o risco de complicações do diabetes. Entretanto, sabe-se que o tratamento intensivo é associado a um aumento do risco de hipoglicemia. Isso, além de outras questões, caracteriza o diabetes em crianças pequenas como uma situação muito especial na Endocrinologia Pediátrica.
Ao diagnóstico de diabetes, as crianças pequenas apresentam maior risco de complicações agudas, como cetoacidose e edema cerebral, em comparação às crianças mais velhas. Algumas evidências científicas ainda mostram que tais crianças apresentam maior concentração de autoanticorpos relacionados ao diabetes, indicando uma maior agressividade da doença autoimune nesse grupo etário. Além disso, a chamada “fase de lua-de-mel”, período no qual geralmente há uma remissão parcial do diabetes (pela função residual do pâncreas), tende a ser menor nos lactentes.
Uma das grandes dificuldades encontradas pelos pais de crianças diabéticas, refere-se à total dependência dos filhos em relação aos cuidados demandados pelo tratamento. Além disso, por apresentarem maior imprevisibilidade alimentar, alta sensibilidade à insulina e por ser mais difícil a identificação de episódios hipoglicêmicos, seu cuidado exige uma maior vigilância dos hábitos de vida, assim como da glicemia capilar.
Administração de insulina
Inicialmente, um dos maiores desafios enfrentados pelos pais é a necessidade de se administrar frequentes injeções subcutâneas de insulina nas crianças, além da monitorização regular da glicemia capilar. Tudo isso provoca um sentimento muito negativo nos pais, já que acreditam que estão, a todo momento, provocando dor aos filhos. Nesse sentido, os dispositivos de aplicação de insulina lançados nos últimos anos (canetas aplicadoras e agulhas curtas – de 4 a 6 mm de comprimento) têm sido ferramentas úteis para a melhor adesão ao tratamento, já que a administração subcutânea de insulina pode-se tornar um procedimento praticamente indolor. Os lancetadores e os monitores glicêmicos também têm acompanhado esse desenvolvimento tecnológico; além disso, a avaliação glicêmica tem demandado quantidade muito pequena de sangue capilar, gerando menor desconforto aos pequenos diabéticos.
Os lactentes e pré-escolares apresentam uma sensibilidade aumentada à insulina, motivo pelo qual doses pequenas de insulina, como apenas 1 ou 2 unidades, podem provocar quedas drásticas da glicemia. Na tentativa de diminuir-se o risco de hipoglicemia, pode-se lançar mão das canetas aplicadoras de insulina, que fracionam a dose de 1/2 em 1/2 unidade, permitindo maior ajuste da insulina prescrita. Outra opção é o uso do sistema de infusão contínua de insulina (“bomba de insulina”), o qual permite finos ajustes de dose, com particular vantagem no período noturno, quando o risco de hipoglicemia é maior.
Em relação ao tipo de insulina a ser usada, hoje, há uma tendência a se prescrever os análogos de insulina, dentre eles as de ação longa (detemir e glargina) e ultra-rápida (glulisina, asparte e lispro). Apesar de estarem liberadas oficialmente para o uso apenas em crianças acima de 6 anos, várias publicações científicas demonstram segurança do uso dessas insulinas em crianças pequenas e com algumas vantagens, em comparação aos tratamentos mais conservadores, com as insulinas NPH e regular. Como principais vantagens, citam-se:
- Podem ser administrados imediatamente antes das refeições, de forma a se reduzir a hiperglicemia pós-prandial;
- Oferecem maior flexibilidade aos pacientes e menor risco de hipoglicemias, especialmente em crianças;
- Podem ser administradas logo após as refeições, quando necessário (por exemplo, crianças pequenas, que geralmente apresentam uma imprevisibilidade alimentar);
- Têm início de ação mais rápido que a insulina regular, o que é desejável no tratamento de hiperglicemias;
- São mais utilizadas como bolus para lanches, em combinação com as insulinas basais, com menor sobreposição de doses;
Questões alimentares
Os lactentes apresentam algumas características muito particulares relacionas à alimentação. Além da dificuldade de se enfrentar o período noturno de jejum, considerado prolongado, somam-se as frequentes mamadeiras durante o dia e/ou à noite e a imprevisibilidade alimentar.
Em relação à recusa alimentar, deve-se encarar o problema da mesma forma que no caso de lactentes sem diabetes. As crianças pequenas tendem a reconhecer o estresse dos pais e rapidamente aprendem a utilizar o diabetes como uma “arma” para conseguir seus alimentos preferidos. Os pais não devem usar determinados alimentos como uma atração para que a criança se alimente, mas sim tentar uma abordagem que favoreça uma alimentação equilibrada. Uma sugestão é oferecer apenas duas opções de alimento e, caso a criança não as coma em 20-30 minutos, retirá-las, sem alarde. Novos alimentos poderão então ser naturalmente introduzidos, de acordo com um cardápio que a criança goste, dentre as opções nutricionalmente aceitáveis. É desejável que haja uma rotina alimentar saudável, com envolvimento familiar, em local apropriado e sem distrações. Caso a dificuldade de alimentação persista, a dose de insulina poderá ser diminuída pelo Endocrinologista Pediátrico.
Prevenção e tratamento dos episódios hipoglicêmicos
O risco de hipoglicemia é uma das maiores causas da ansiedade vivida pelos pais de crianças pequenas com diabetes. Lactentes são incapazes de comunicar seus sintomas de hipoglicemia, sendo a palidez/sudorese e a mudança de comportamento, muitas vezes, uns dos poucos sinais de fácil reconhecimento. A hipoglicemia noturna nesse grupo é muitas vezes causada pelo jejum prolongado, o que pode ser minimizado pela ingestão de carboidratos complexos (por exemplo, leite com uma farinha) antes de dormir e também pela aplicação de análogo de insulina de ação lenta.
As recomendações das sociedades médicas envolvidas com o cuidado de crianças e adolescentes diabéticas orientam um menor rigor no controle glicêmico das crianças menores que 6 anos, sendo aceitável o alvo da hemoglobina glicada entre 7,5 e 8,5%.
Conclusões
O aumento da incidência do diabetes mellitus tipo 1, particularmente em crianças pequenas, chama a atenção para as grandes implicações envolvidas no seu tratamento, seja no cuidado domiciliar, seja no cuidado médico. Lactentes e pré-escolares apresentam várias características específicas da idade, o que distingue o seu cuidado das crianças mais velhas. As questões clínicas e psicossociais geralmente demandam um grande esforço dos pais e da equipe de saúde de forma a assegurar um controle metabólico adequado, evitando-se episódios de hipoglicemia. Para tal, é essencial que o esquema de insulinoterapia seja individualizado, utilizando-se da melhor forma possível, recursos que possibilitem um regime de tratamento mais fisiológico. É de vital importância que o acompanhamento da criança diabética seja realizado por uma equipe multiprofissional, que envolva a educação continuada em diabetes e o suporte técnico e psicológico às famílias. A equipe de saúde deve, essencialmente, ter experiência no tratamento de crianças pequenas com diabetes mellitus.