Corpo em movimento: como incorporar a atividade física no dia a dia das crianças e acabar com o sedentarismo
Publicado em 18 de janeiro de 2023A rotina escolar, tradicionalmente, concentra grande parte das atividades físicas das crianças. Mas será que se mexer na escola é suficiente para incorporar o hábito de se exercitar no dia a dia? E qual é o papel da família nisso? Especialistas discutem como ganhar a batalha contra as telas, recuperar o tempo perdido na pandemia e reservar espaço para manter os pequenos ativos sempre
Quando a pandemia começou, em março de 2020, Laura, então com 5 anos, viu-se privada da escola que começou a frequentar aos 4. Era na instituição em Bento Gonçalves, cidade da Serra Gaúcha, que ela pulava, brincava, ia ao escorregador e ao balanço. Fora da escola, ainda tinha aulas de balé. Mas, além disso, a família não costumava incluir exercícios na rotina. “A gente praticamente não fazia outras atividades, como andar de bicicleta”, conta a mãe da menina, a corretora de imóveis Cristiane Gampert, 38 anos.
Laura, que hoje tem 7 anos, já enfrentava problemas de refluxo e constipação, que foram agravados no período longe da escola por causa da rotina sedentária. O isolamento também a fez ganhar peso por causa da maior oferta de guloseimas em casa sem o gasto calórico usual. Ao recorrer à ajuda de um gastroenterologista para resolver as questões digestivas, a família ouviu que a pequena precisava mesmo era se exercitar. Os pais, então, matricularam a filha numa academia infantil recém-inaugurada no município de 120 mil habitantes. Era outubro de 2021, quando a vacinação de 46% da população possibilitou o retorno das atividades presenciais. Duas vezes por semana, Laura começou a fazer funcional, treinos que alternam exercícios de postura, equilíbrio, corrida e flexibilidade. Hoje, um ano após iniciar a atividade física regular, a saúde dela é outra – sem falar na alegria quando chega o dia da academia. “Ela ama porque as aulas são diferentes a cada dia”, afirma a mãe.
Os incômodos do refluxo e constipação melhoraram ao ponto de a menina não precisar mais recorrer a remédios. “De lá para cá, ela desenvolveu muito a postura, o sistema digestivo, tudo”, comemora Cristiane. A questão postural, valorizada na fala da mãe, tem um simbolismo ainda maior. Tímida e muito apegada à família, Laura tinha dificuldades em permanecer nas aulas da academia o que, felizmente, foi superado um tempo depois.
Menos atividades
O caso de Laura exemplifica os prejuízos do sedentarismo – e a importância de mexer o corpo! –, impulsionado pela pandemia. Quando a covid-19 chegou ao Brasil, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) começaram a mapear 816 famílias com filhos menores de 13 anos para entender como elas enfrentariam o confinamento. O objetivo era mensurar o impacto das medidas sanitárias em indicadores de saúde, como sono, atividade física, sedentarismo – e indicar estratégias para minimizar as consequências ou remediar o estrago.
Antes do isolamento, 67,8% das crianças praticavam atividade física pelo menos duas vezes por semana. Um mês depois, nem 10% seguiam a mesma rotina. Em contrapartida, o tempo diante das telas cresceu significativamente, segundo relato de 75% dos pais entrevistados: não só com as aulas online, mas também em função de mais tempo dentro de casa. O resultado à época assustou os pesquisadores. “Há um contexto de restrição de movimento familiar, com sobrecarga emocional e psicológica dos responsáveis, acúmulo de trabalho domiciliar e preocupações com um período incerto, impactando o sistema de apoio da criança e práticas de cuidado”, segundo um dos artigos do estudo.
Tamanha preocupação tem razão de ser. “O exercício é um supermedicamento”, afirma a endocrinologista Maria Edna de Melo, chefe da Liga de Obesidade Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “Age tanto na parte metabólica – fazendo com que a insulina (hormônio que transporta o açúcar para dentro das células, gerando energia para o corpo) atue melhor, aumentando o gasto energético – quanto na saúde mental, por meio da liberação de substâncias que trazem sensação de bem-estar, e na própria socialização que ocorre ao fazer exercícios”, diz.
Não à toa a Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza, no mínimo, 60 minutos diários de exercício com intensidade moderada ou vigorosa para crianças e adolescentes de 5 a 17 anos. Ou seja, não é caminhar no shopping ou ir até o supermercado com os pais, por exemplo, que vai entrar nesta conta. Para de fato se exercitar, a frequência cardíaca precisa aumentar até provocar sinais bem fáceis de identificar no corpo. O professor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP) Osvaldo Ferraz explica que, nas crianças, é fácil observar a mudança: elas sentem calor, ficam suadas e excitadas.
Tempos modernos
A pandemia, no entanto, encontrou os pequenos em uma situação que já não era das melhores. Estudos que acompanharam famílias ao longo de 1980 e 2000, em diferentes países, revelam que as crianças de hoje fazem 30% menos atividade aeróbica, em média, do que seus pais faziam na mesma idade. Ainda não existem dados concretos sobre quantas crianças brasileiras são sedentárias. “Temos dados para adolescentes mas, para os menores, apenas casos baseados na experiência individual e não em trabalhos científicos publicados”, lamenta o nutrólogo Mauro Fisberg, professor da Unifesp e diretor do ILSI Brasil, entidade que estimula a aplicação das descobertas científicas para melhorar a vida das pessoas.
Na China, uma pesquisa de 2019, com mais de 100 mil crianças e adolescentes de 7 a 19 anos, mostrou que apenas 34% delas cumpriam a recomendação de 60 minutos diários de atividade física de intensidade moderada a alta. Isso as torna menos tolerantes ao aumento da temperatura do planeta – porque a falta de exercício aeróbico reduz nossa capacidade respiratória e nos deixa mais cansados para fazer tarefas cotidianas –, além de mais suscetíveis a uma série de doenças. Somada à má alimentação, a falta de movimento tem repercussões desde a imunidade, passando pelo peso (que por si só está envolvido com inúmeras outras questões, como obesidade, pressão alta, diabetes etc), até o humor e aprendizado. “A atividade física não tem função só de fortalecer a parte cardíaca ou de prevenir o sobrepeso. Ela permite uma melhoria do estado geral da criança, o que ajuda até a combater infecções”, afirma o nutrólogo Fisberg.
E já estamos sentindo as repercussões. Um documento divulgado em julho pela Sociedade Europeia de Cardiologia revelou que 90% dos casos de hipertensão entre os 6 e os 16 anos estão associados ao combo sedentarismo, dieta rica em sal e açúcar e excesso de peso – apenas uma minoria está associada a problemas renais, genéticos e/ou cardiovasculares. Entre as causas do sedentarismo, claro, estão o tempo em frente às telas.
A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que, até os 2 anos, a criança não seja exposta a tablets, celulares ou TV. Após essa idade e contando com as atividades escolares, indica que o tempo seja de 2 horas por dia. Mas a realidade passa (bem) longe disso. “Estudos mostram que as crianças brasileiras ficam em média cinco horas diárias em frente à TV, tablet ou smartphone”, diz a endocrinologista Maria Edna Melo. Um levantamento feito pela Lenstore, fabricante britânica de lentes de contato, mostrou que as crianças brasileiras estão entre as líderes do ranking mundial. O Brasil só fica atrás dos Emirados Árabes e dos Estados Unidos na pontuação, baseada em indicadores como tempo diário de conexão, percentual de população com acesso à internet, previsão de prevalência de obesidade infantil em 2025 e hábitos de prática de atividade física infantil.
Comparadas às atividades físicas e às brincadeiras ao ar livre, as telas são mais viciantes e convidativas. “Agora temos de resgatar a infância da pandemia, que aconteceu num momento muito decisivo da vida dessas crianças. Elas foram impactadas de forma transgeracional”, alerta a pediatra Denise Lellis, que coordena o departamento de obesidade infantil na Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso). “A inatividade faz com que fiquem irritadas e diminuam sua sociabilidade, o que atrapalha o desenvolvimento porque elas não interagem com outras crianças de verdade”, completa.
O tempo gasto em frente às telas impacta na balança não só por causa da inatividade, mas devido às calorias extras. Paradas, elas tendem a ingerir alimentos hiperpalatáveis – aqueles cheios de sódio, gordura e açúcar, ingredientes que os tornam saborosos. “O consumo alimentar inadequado é bem mais importante que o sedentarismo para o acúmulo de peso corporal. Mesmo assim, é imprescindível combinar a prática de atividade física à dieta equilibrada”, explica Maria Edna. É um círculo vicioso: sem fazer atividade física regular, sobra mais tempo para a ingestão desses alimentos, como barras de chocolate ou salgadinhos e, claro, mais tempo para as telas. No caso dessas guloseimas, é difícil comer “só um pouquinho”.
Mente e corpo sãos
Falando em alimentação, você sabia que o exercício físico também modula a busca por alimentos? “Quando termina de se exercitar, a pessoa normalmente quer comer algo mais leve. Ela escolhe melhor o que ingere”, afirma Maria Edna. Ou seja, não é apenas uma perda de peso promovida pelo aumento do gasto calórico, mas o movimento repercute na seleção do que comer inclusive pelas crianças (algo fisiológico mesmo!). Para as mais seletivas, o exercício é um aliado do apetite. “Elas podem até experimentar comidas novas”, diz Denise Brasileiro, membro do Departamento Científico de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
E tem mais: ser ativo libera o hormônio do crescimento, conhecido pela sigla em inglês GH e, como citamos no início da reportagem, protege a saúde mental, inclusive a longo prazo. Um estudo desenvolvido na Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia analisou 795 crianças de 6 anos, e as reavaliou aos 8 anos e aos 10 anos: a realização de atividades físicas de intensidade moderada a vigorosa teve correlação com menos sintomas depressivos nos anos seguintes. Um artigo da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) corrobora com a pesquisa ao afirmar que afastar as crianças das telas, brincar e praticar atividades ao ar livre reduz o estresse e sintomas de ansiedade e depressão. Outros estudos, citados no Caderno de Desenvolvimento Humano sobre Escolas Ativas no Brasil, mostram, ainda, que fugir do sedentarismo traz incremento no desempenho acadêmico, saindo-se melhor em questões de memória e aprendizado.
Além do bem-estar para o momento presente, a criança vai agradecer no futuro por ter começado a se exercitar desde cedo. “A gente faz uma poupança dos compartimentos muscular e ósseo”, exemplifica Maria Edna. Ou seja: a massa muscular adquirida com exercícios físicos fica acumulada, o que acarreta em menos perda de músculos na velhice. Em resumo, crianças que se exercitam têm menos chances de virarem idosos frágeis, com predisposição para quedas ou osteoporose.
Diversão como guia
Para incentivar desde cedo esse hábito saudável, é importante que a criança se divirta. Os pequenos estão muito preocupados em brincar para pensar nos benefícios da atividade física a longo prazo, porque, claro, não pensam nela racionalmente, não buscam performance como os atletas. Então se interessam por ela quando podem se divertir e interagir com os amigos. “A formação do hábito deve acontecer, mas de uma forma lúdica, condizente com a faixa etária”, alerta Maria Edna.
“Nosso foco é a integração, e não o desempenho atlético”, diz o professor de educação física Jefferson Rodrigues, um dos coordenadores do MotivaAção, uma empresa de Porto Alegre (RS) que começou como colônia de férias e hoje oferece atividades, como futsal, handebol, slackline e treino funcional no contraturno escolar. O MotivaAção separa as crianças em duas faixas etárias: dos 5 aos 8 e dos 9 aos 12. Para os menores, aparelhos coloridos e aulas que vão direto à prática. Os pré-adolescentes já entendem melhor que vão se beneficiar do exercício: “Temos jogos em que trabalhamos força e velocidade. Então explicamos por que a criança vai precisar ser forte no dia a dia. Eu já tive alunos vindo contar que melhoraram a força e que agora podem ajudar a trocar os móveis de lugar em casa”, conta Rodrigues.
São essas oportunidades de experimentar e repetir movimentos que ajudam os pequenos a desenvolver habilidades motoras fundamentais, como a estabilidade, a motricidade e a locomoção. “Hoje vemos crianças de 7, 10 anos que não sabem correr, pular ou saltar porque não receberam os estímulos adequados para desenvolver essas habilidades”, alerta a fisioterapeuta Cristina dos Santos, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É a partir dessas competências que elas aprendem a jogar futebol, dançar balé ou lutar judô, combinando os movimentos para fazer exercícios mais complexos.
Os esportes mais estruturados, aliás, são recomendados a partir dos 5 anos. E é importante deixar a criança experimentar o que tiver mais afinidade. Se ela desistir logo, tudo bem. Os pais precisam acolher esse desejo e propor algo diferente. “Desenvolvimento é poder escolher, e isso é fundamental. Mas você só pode escolher quando teve opções. Por isso, a monocultura esportiva não é desejável”, observa Osvaldo Ferraz, da USP. No caso dos esportes competitivos, de acordo com Denise Brasileiro, da SBP, eles devem ser instituídos numa faixa etária maior, depois de 9 ou 10 anos, mas sempre respeitando o desejo da criança e não buscando atender às próprias expectativas criadas pelos pais.
Fora do ambiente escolar
Infelizmente, a disciplina de educação física na escola não tem como contemplar toda essa diversidade e muito menos dar conta dos 60 minutos diários de exercícios que são recomendados. “Esse tempo de duas vezes por semana, que a maioria das escolas adota, é difícil mudar”, pondera Osvaldo Ferraz. O grande problema é que o período, que já é curto, muitas vezes, é mal aproveitado. “Se for pensar numa aula de educação física com 30, 40 crianças, a oportunidade de prática motora vai ser bem pequena”, diz o professor. Estudos contabilizam que, com um instrutor experiente, o período de aula que as crianças realmente usam para mexer o corpo é de 50% – isso na melhor das hipóteses.
Por isso, o ideal é que as crianças possam fazer atividades físicas no contraturno escolar, o que é um enorme desafio, já que nem todos têm essa oportunidade. “Por conta do processo de urbanização, a periferia tem poucos espaços seguros destinados à prática de exercícios”, explica Osvaldo. Esse abismo social entre crianças ricas e pobres foi aprofundado na pandemia: a população que pôde passar o isolamento social em condomínios com quadras de esporte sofreu menos do que as crianças cuja única oportunidade de se exercitar era oferecida na escola. “Também temos de lembrar que houve um empobrecimento geral da população. Isso fez com que as famílias colocassem em segundo plano algumas atividades extraescolares, que pesam no bolso”, comenta Mauro Fisberg. É por essa razão que as políticas públicas para beneficiar quem não tem condições de pagar por isso são tão necessárias.
Mas há saídas sem onerar o seu bolso. Busque parques e praças da sua cidade, bem como centros esportivos gratuitos, caso do Paralímpico Brasileiro, local da foto de capa desta edição, com valores acessíveis, como SESCs. Nesses locais, além de o seu filho mexer o corpo de forma divertida, encontra um ambiente convidativo para praticar esportes, como jogar bola e basquete, entre outros. No entanto, a virada do jogo para uma vida menos sedentária para o seu filho depende de você. Luiz Dantas, professor da Escola de Educação Física e Esporte da USP, destaca ser mais provável que os filhos sejam ativos se os pais têm oportunidades de se exercitar e aproveitar um lazer ativo. “Quando só contestamos isso nas escolas, estamos postergando a mudança para o futuro, esperando que as crianças sejam menos sedentárias enquanto alimentamos um modo de vida sedentário para os adultos”, afirma Dantas, que participou como pesquisador do Programa Escolas Ativas.
Segundo a pediatra Denise Brasileiro, outro fator que aumenta as taxas de sedentarismo dos pequenos é a falta de tempo de qualidade que as famílias dedicam aos filhos. Nessa idade, a criança aprende observando os pais – é uma fase crítica da vida para criação de hábitos duradouros. Isso também vale para o tempo passado em frente às telas. “É preciso pensar no que ela vê em casa. Muitas vezes, os adultos falam que ela não pode ficar no celular, tablet ou videogame, mas não saem da frente do computador”, alerta Cristina dos Santos. É aí que entram as negociações: as recomendações funcionam melhor por meio de acordos mútuos entre filhos e pais. Uma boa alternativa, segundo a especialista, é contrabalançar o uso das telas, propondo, por exemplo, que joguem um videogame que exige movimento, como alguns jogos de dança, em vez de jogos que não exigem mobilidade. De quebra, você entra nessa com o seu filho também.
No caso dos exercícios físicos, vale lembrar que eles não se resumem ao esporte – e as crianças não devem ser incentivadas a olhar para as práticas motoras focando apenas no desempenho e na competição. Inclusive aí está uma pista do porquê elas deixam de gostar de alguma atividade. “Ela não nasce gostando ou não de algo”, afirma Jefferson Rodrigues, que considera as competições esportivas excludentes porque deixam de fora os menos habilidosos. Os esportes, claro, seguem superválidos, mas é importante que os pais os valorizem pelos aspectos lúdicos, de respeito a regras e de integração com outras crianças.
Para inspirar os pequenos aí na sua casa, então, o primeiro passo é vencer a preguiça, buscar alternativas para driblar a falta de tempo e sair da inércia. Inclua o seu filho em caminhadas, pedaladas, brincadeiras cheias de animação e movimento. Diga “não” ao sedentarismo. Ganha você, ganha o seu filho. Vamos nessa?
Fonte: Revista Crescer